Mulheres X Crimes- Em Flagrante Delito©
Por: Elizabeth Misciasci
Passava do meio dia e a intensa luz que entrava pela fresta da janela do quarto, despertou Lucileide, fato incomum, já que costumeiramente, nunca acordava antes das três da tarde.
Contrariando seu exacerbado mau humor, sorrindo e cantarolando, como se fosse um dia especial, se levantou, e em passos lentos, dirigiu-se até o fogão para preparar seu café.
-“Fumar sem café nada feito”! -Dizia ela com a voz ainda rouca de sono.
A água já borbulhava na trempe do antigo fogão, quando um choro agudo e elevado de criança rompeu o silencio.
Era Antonio Marcos, seu filho. Embora já tivesse três anos de idade, o menino franzino, ainda não andava, nem falava, apenas chorava muito. Exaltada com o barulho da criança, Lucileide voltou para o quarto e bruscamente arrancou o menino de um velho berço.
- “Cala a boca desgraçado, se não te jogo no lixo!” - Esbravejava ela, completamente irada.
A criança que não falava, demonstrava que entendia perfeitamente o que a mãe estava a dizer, cessando o choro imediatamente.
Já jogado em um pano sujo no chão, Antonio Marcos brincava com um carrinho sem rodas e uma bolinha de pano, feita de meia. A criança praticamente sem roupas, ficava em um canto da casa, que também era visivelmente carente de higiene, pois a mãe não se importava com muita coisa, principalmente afazeres domésticos.
Depois do tradicional “gole de café” e alguns cigarros, Lucileide resolveu preparar um mingau de fubá para o menino que nunca demonstrava estar com fome.
A mamadeira pronta e encardida, fora colocada ao lado de Antonio Marcos, que aparentemente amedrontado, esticou os bracinhos esforçadamente e a pegou, colocando próxima ao seu corpo, porém, não tomou.
Enquanto isso na cozinha, Lucileide, que já havia consumido várias doses de cachaça se preparava para almoçar. Servindo-se em um prato de plástico, completamente engordurado, a refeição era composta de uma porção de arroz e um pouco de abobrinha, sem refrigeração alguma, estava lá, no mínimo há uns dois dias.
Alcoolizada, alimentada e não muito satisfeita, passou pelo cômodo onde deixara Antonio Marcos, foi quando percebeu que a mamadeira de mingau permanecia intacta. Sem hesitar, e em meio a uma avalanche de palavrões partiu para cima do menino aos gritos, totalmente descontrolada, sacudia a criança com tamanha força que parecia querer desmontá-lo, ou quebra-lo ao meio...
Os moradores da redondeza, mesmo omissos, viviam agoniados com o tratamento desumano e os constantes berros de Lucileide com o filho. No entanto, em virtude das suspeitas visitas que freqüentavam a casa da “mal feitora” acabava por inibir qualquer envolvimento, pois existia o medo de posteriores represálias. Assim sendo, a vizinhança mesmo repudiando contrariada, era unânime em fazer de conta que nada viam ou ouviam... Ninguém tinha coragem de se envolver, nem denunciar, porém, a revolta diante da intolerável crueldade, motivou a mais antiga moradora do lugar, dona Mirtes, a tomar uma postura e o apoio da comunidade, foi geral.
Sem pedido de licença ou permissão, a anciã, adentrou a casa de Lucileide e se deparou com um insólito e inédito cenário. Antes deste episódio, dona Mirtes afirmava orgulhosa que aos 84 anos, já havia visto e vivido de tudo na vida...
–“Eu estava enganada” - Posteriori confessou.
Sem se preocupar com a presença da vizinha, e depois de surrar Antonio Marcos, Lucileide ignorou os apelos de dona Mirtes, jogou o filho em uma bacia de água gelada e saiu do cômodo.
O choro cessou, substituído pelo incontrolável tremor dos dentinhos de leite daquela criança, pressupondo todo o frio que sentia e que seus lábios roxos salientavam, na pele já seca e pálida.
Dona Mirtes, tratou de cuidar do menino, não viu o tempo passar e lá ficou por horas a fio.
Até que ele adormecesse, foi sua atenta e carinhosa guardiã, com a sensação de ter cumprido dentro do possível sua missão, - momento de voltar pra casa.
Já quase na porta de saída, sentiu um forte cheiro de álcool, foi então que percebeu Lucileide caída numa poltrona, embriagadamente dormindo com uma garrafa nas mãos, dona Mirtes indignada, cansada e entristecida, foi embora.
Definitivamente, aquela mãe, repudiava a maternidade e sua prole...
Lucileide quando ainda menina, fora vítima de abuso sexual pelo tio, razão pela qual escondeu a pior parte do ocorrido e nunca pensou em denunciar quem a violentou. Na verdade, tinha medo da tia que a criou, e por ser esta, esposa de seu estuprador, jurou jamais revelar a dor daquela atrocidade. Para agravar o drama, a violência sofrida resultou em uma indesejada gravidez. A tia, mulher severa, beata fanática e conservadora, a fim de preservar os costumes e nome da família, lhe jogou na rua.
-“Tempos difíceis!”... Um dia dormia ao relento, em outro arrumava uma faxina e na maioria das vezes, almas bondosas lhe estendiam as mãos em caridade.
Enfim, Antonio Marcos nasceu!
Apenas um bebezinho, sem qualquer responsabilidade ou culpa, uma criança inocente e indefesa, mais que seria punida a cada dia de sua vida, simplesmente por ter nascido.
Na concepção de Lucileide, aquele nato, não passava de um tormento, a seqüela continuada de uma violência vivida. Antonio Marcos, nada mais era que um fardo pesado, o resultado podre de um fato, uma dolorosa e doentia lembrança, assim, aquela pequena criatura deveria e seria punida, toda a responsabilidade da tormenta, fora transferida ao filho indesejado.
Com o tempo, Lucileide passou a se prostituir e se embebedar, até tornar-se dependente do álcool, um litro de cachaça pura, era aperitivo... Enquanto “afundava a cara” na bebida, entregue a promiscuidade, Antonio Marcos, se arrastava pela casa. Sobrevivendo não se sabe como, sem nenhum cuidado, o menino resistia, estando todo tempo sujo e mal alimentado, razão pela qual parecia que já nem sentia fome.
O circulo vicioso de maus tratos e violências, era rotineiro.
Ninguém entendia como aquela criança agüentava tanta brutalidade...
Um novo dia se inicia e a intensa luz que entrava pela fresta da janela, desta vez não desperta quem não dormiu.
Lucileide passou as claras se embriagando, não sabe bem o quanto bebeu...
De repente, Antonio Marcos engatinhando, se aproxima da mãe, que fora de si, lhe chuta. Num forte ponta-pé, o menino sai do chão, depois desliza, e cai para longe dela...
Ao ver que a criança fora arremessada, para bem distante, Lucileide cai na gargalhada, e com a garrafa de pinga na mão, da mais uma virada no próprio gargalo. De gole em gole, e como se fosse possível, ela esta mais bêbada...
Antonio Marcos caído após o chute que levara muito assustado e engolindo o choro, parece passar mal. De repente começa a tossir interruptamente. Lucileide já furiosa vira o resto da bebida na boca, partindo em seguida para cima da criança, e com a própria garrafa o agride.
A mistura de sons, onde os gritos de Lucileide predominavam, ia alertando e mobiliando a vizinhança.
Enquanto os vizinhos chamavam a polícia, Dona Mirtes muito angustiada não se conteve, precisava averiguar de imediatamente e de perto o que estaria acontecendo. Foram várias tentativas de entrar na casa, porém em vão, pois estava trancada com chave e trincos. No entanto, a boa e antiga moradora da região, com astúcia e vasta experiência de vida, conseguiu uma "brecha" para assistir o que nunca pensou um dia poder presenciar...
Naquele momento, Dona Mirtes lamentou ter vivido tanto, para ver o que nunca gostaria de ter visto...
A viatura policial dobrou a rua... Mas era tarde... Tarde demais...
Mesmo com a chegada da policia, Lucileide ainda gritava! Após três chamados não atendidos, os policiais arrombaram e invadiram a casa.
O semblante de dona Mirtes, que tudo presenciou, era de uma tristeza inenarrável...
Antonio Marcos, caído ao lado de uma mesa velha de madeira, com a pequenina cabeça estourada, enquanto Lucileide insaciável, ainda socava ferozmente, com as mãos em punho, aquela criança já morta...
Algemada, sendo conduzida até a viatura, parecia não saber o que havia feito, pois continuava a ameaçar insistentemente e aos berros:-
-"Antonio Marcos! Seu desgraçado, eu juro, que um dia ainda vou te matar"...
Lucileide fora presa em flagrante delito, processada e condenada nas formas da lei. Hoje cumpre a sentença imposta, 19 (dezenove) anos. Não vislumbra futuro, sua vida é onde está! Mas sonha em sair nem que seja por algumas horas, pra ela, por fim, na vida daquele que com suas próprias mãos e há muito, ela já "trucidou".
Seu filho!
*Nota da Autora: - Este texto foi produzido com base em Fatos Reais.
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http://recantodasletras.uol.com.br/cronicas/950929